
Ana Victória Padilha e Gabriela Vaz (acadêmicas do 4º semestre de RI da UNAMA)
Rodrigo Lobato (acadêmico do 6° semestre de RI da UNAMA)
Com a chegada da colonização portuguesa no território brasileiro, houve um contato entre civilizações que resultou em violência a partir da expansão colonial. Isso trouxe consequências devastadoras para os povos que viviam na colônia brasileira. Essa violência pode ser evidenciada por dados que revelam como a hostilidade dos colonizadores contra grupos que viviam no território recém descoberto foi responsável pela redução populacional dessas comunidades ao longo de cinco séculos (Castro e Silva et al, 2021), constituindo um percentual de 99% dos povos que viviam na costa e 83% dos que habitavam as regiões centrais.
A partir disso, faz-se necessário entender como, ao longo dos anos, as populações indígenas vêm sofrendo cada vez mais não somente em uma violência física, mas com questões estruturais, sociais e econômicas. Povos originários foram historicamente reprimidos, línguas e tradições apagadas, realocados de suas terras e uma das classes que mais sofre com desigualdades, acesso à educação, saúde, saneamento básico, etc. Por isso, entende-se que a dificuldade histórica persiste e se trata de um desafio social e político que deve ser enfrentado.
Nesse sentido, quando o Estado Brasileiro não fornece segurança jurídica para o reconhecimento dos territórios indígenas ou, como afirma o cacique Irinilce Kumaruara, “os abandonam e os tratam como animais” (Lima, 2024), e, assim, oferece a eles um acesso precário a saúde, se pratica a necropolítica. A palavra “necro” vem do grego e significa morte, enquanto “política” se refere a governo da população de uma cidade. Assim, portanto, a chamada “política de morte”, é a expressão máxima da soberania que reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer, conforme Mbembe (2016).
Tais políticas afetam em sua maioria as camadas mais vulneráveis, como é o caso das comunidades tracionais, que neste presente artigo, se refere ao povo da etnia Xipaya.
O autor desse termo, Achille Mbembe, enfatiza que o descaso do Estado, quando atrelado ao contexto do sul global, por exemplo, se exemplifica na prática com as mazelas históricas das heranças estruturais do processo colonial que marcaram a sociedade. No caso do Estado brasileiro, essa afirmação é intrínseca à realidade, pois o cotidiano dos povos indígenas escancara a forma como o Estado exerce esse poder de decidir quem pode viver e quem pode morrer, seja pelo abandono na área da saúde, seja pela omissão diante das invasões de terras, ou ainda pelo incentivo indireto à expansão predatória de atividades extrativistas na Amazônia.
Isso foi bem evidente no caso da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte em Vitória do Xingu, no Estado do Pará, que impactou e vem impactando negativamente todo o modo de vida das comunidades da região, como os habitantes da comunidade Kujubim.
É justamente nesse entrecruzamento entre teoria e realidade que, por meio de uma atividade promovida na disciplina Espanhol Instrumental no curso de Relações Internacionais da Unama, a professora Ermelinda Báez incentivou os estudantes do terceiro semestre a desenvolverem um trabalho denominado “Voces De La Tierra”, no qual um dos eixos fora dialogar sobre os desafios e oportunidades das comunidades indígenas na COP 30.
Com base no reconhecimento da importância, da força e da luta do povo Xipaya, foi desenvolvido um seminário temático, que resultou na produção de um vídeo com entrevista ao Cacique Léo Kipaya. O objetivo era representar de maneira fiel o protagonismo Xipaya na luta pelo reconhecimento e pela justiça em relação aos povos indígenas no Brasil.
O Cacique Paynaré (Léo Xipaya) exerce a liderança da aldeia Kujubim, comunidade que reúne os povos Xipaya e Kuruaya. Sua atuação tem sido fundamental para processos de reorganização social, valorização e preservação da cultura, da história e das tradições na região do médio rio Iriri, afluente do rio Xingu, na Amazônia paraense. A sua postura de resistência frente a constante necropolítica do Estado para com o seu povo é de extremo reconhecimento regional e nacional.
O Cacique tem presença ativa nas discussões e movimentos pertencentes à luta dos povos indígenas contra os ainda presentes, os processos de colonização e o avanço do extrativismo em suas terras, além de ser uma ponte entre o caráter político e a sociedade civil, no que tange às questões que acometem o seu povo.
Essa experiência mostra como os povos indígenas vivem e percebem a identidade nacional brasileira, evidenciando tensões significativas entre o reconhecimento formal e a efetividade de direitos. Conforme a entrevista, o Cacique afirma que embora haja reconhecimento legal, as leis não funcionam plenamente nos territórios, e os indígenas acabam sendo tratados como “massa de manobra” sem que a identidade nacional considere suas necessidades. Essa ausência de garantias coloca os povos originários em posição de constante vulnerabilidade, exemplificando a necropolítica na prática.
Um reflexo concreto dessa vulnerabilidade é a preservação da língua Xipaya. O cacique relata que há décadas seu povo enfrenta dificuldades para manter viva a língua materna. Apesar disso, iniciativas de reavivamento, como oficinas e práticas educativas, demonstram resistência cultural, mesmo com a rápida inserção da língua portuguesa.
Diante disso, o direito à preservação cultural é essencial para a continuidade do modo de vida indígena e para a afirmação de sua identidade frente a situações da contemporaneidade. Logo, a resistência na preservação da língua indígena é um enfrentamento à necropolítica e à colonialidade presentes, que ainda afetam as comunidades indígenas.
Além disso, Léo Xipaya destaca a importância de órgãos institucionais na defesa das comunidades. Mesmo que alguns indígenas não compreendam plenamente os mecanismos de participação, instituições como o Ministério Público Federal, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) e o Ministério Público Estadual podem servir como canais de voz e proteção. Para ele, é fundamental que a FUNAI atue de forma proativa no esclarecimento para os povos originários.
Essa atuação deve contemplar tanto as comunidades de recente contato, quanto aquelas de contato mais consolidado, considerando que a assimilação de informações já representa um desafio para muitos. Tal cenário se agrava ainda mais no caso de grupos que não possuem familiaridade com determinados conhecimentos.
Nesse sentido, ele acredita que os órgãos oficiais, como a FUNAI, têm condições de chegar efetivamente aos “ouvidos” das comunidades. Léo afirma também, que essas iniciativas sejam incorporadas às escolas, para que as futuras gerações compreendam a importância da preservação ambiental em conjunto com a comunidade, fortalecendo tanto a identidade cultural quanto a sustentabilidade dos territórios indígenas.
No âmbito internacional, o Cacique Paynaré destaca que a participação indígena na COP 30 poderá ser limitada se não houver consulta às comunidades. Visto que, muitas decisões são tomadas sem ouvir os líderes indígenas e essa ausência de consulta prévia contraria instrumentos que asseguram a participação indígena na tomada de decisões sobre territórios e políticas ambientais.
De acordo com a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil, trata da importância de realizar uma consulta livre, prévia e informada sempre que alguma obra, ação, política ou programa for ser desenvolvido e afete aos povos tradicionais (IPHAN, 2011). Assim, essa consulta é essencial para que os povos indígenas possam influenciar efetivamente políticas que afetem seus territórios e modos de vida.
Além disso, na entrevista, o Cacique ressalta que a proteção da floresta está diretamente ligada à sobrevivência dos povos indígenas, “se a mata precisa, nós, como seres humanos, precisamos também”. Ele também tece críticas no âmbito de decisões sobre políticas ambientais que muitas vezes são feitas por pessoas que não vivem nas comunidades, não são figuras de liderança e não participam da preservação diária da floresta, evidenciando exclusão e distorção das demandas indígenas.
Portanto, ao determinar políticas ambientais sem ouvir aqueles que vivem na floresta, o Estado e as instituições nacionais e internacionais decidem “implicitamente” sobre quem terá seus modos de vida preservados e quem continuará vulnerável a exclusão, configurando-se uma forma de necropolítica.
Diante da temática exposta, a equipe do Amazônia em Foco sugere como recomendação o vídeo da entrevista conduzida pelos discentes do curso de Relações Internacionais da UNAMA, no âmbito da disciplina de Espanhol Instrumental, com o Cacique Paynaré (Léo Xipaya), a qual evidencia o protagonismo do povo Xipaya na luta pelo reconhecimento de seus direitos e pela justiça em relação aos povos indígenas no Brasil.
< https://drive.google.com/drive/folders/1WFm8xrViVta9Do_iGPlTz3HWcjZB47Ci?usp=sharing >
Para maior compreensão acerca das tradições e língua do povo Xipaya, recomenda-se o livro “Xipaia Kaména da usetúpa Sedja Kaména bahu de anu” (2021), elaborado com a assessoria da linguista Carmen Lúcia Reis Rodrigues, que pesquisa a língua Xipaya desde 1990 (cf. Rodrigues, 1995). A obra apresenta um estudo e uma “tradução” da gramática Xipai para o entendimento em língua portuguesa. Ela também contribui para a preservação da língua e da cultura dos Xipaya, permitindo que seus saberes, tradições e identidade sejam transmitidos às gerações atuais e futuras. O livro está disponível para a leitura gratuita, através do link a seguir:
Além disso, o acompanhamento da comunidade Xipaya pode ser feito através da rede social, como o Instagram, em que a comunidade mantém um perfil e compartilha vídeos e fotos sobre a vida cotidiana, ritos, atividades culturais, criando assim, uma perspectiva de sua realidade. Além disso, o jovem cineasta e comunicador, Mitã Xipaya, visa comunicar e levar informações da aldeia para o mundo, de uma forma que acabe com as barreiras comunicacionais e notícias falsas, de maneira que a realidade Xipaí seja mostrada sem cortes. Para mais informações, acesse:
Instagram: < https://www.instagram.com/aldeiakujubim_xipaya_e_kuruaya >
Por fim, recomendamos o trabalho da APIB, articulação dos povos indígenas do Brasil, fundada em 2005, nasceu com o propósito de fortalecer as alianças indígenas, unificar a luta dos povos indígenas das diferentes regiões do Brasil, defender seus direitos e demandas.
Site: < https://apiboficial.org/?lang=en >
Instagram: < https://www.instagram.com/apiboficial?igsh=Z2Q5Y2Y0dmtkd2Vk >
Facebook: < https://www.facebook.com/apiboficial >
REFERÊNCIAS
CASTRO E SILVA, Marcos Araújo; FERRAZ, Tiago; COUTO-SILVA, Cainã M.; LEMES, Renan B.; NUNES, Kelly; COMAS, David; HÜNEMEIER, Tábita. Population histories and genomic diversity of South American natives. Molecular Biology and Evolution, v. 39, n. 1, jan. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.1093/molbev/msab339. Acesso em: 31 ago. 2025.
FUNDAÇÃO NACIONAL DOS POVOS INDÍGENAS (FUNAI). Funai dialoga sobre ações de reconhecimento e proteção territorial com povo Xipaya. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2023/funai-dialoga-sobre-acoes-de-reconhecimento-e-protecao-territorial-com-povo-xipaya. Acesso em: 29 ago. 2025.
MBEMBE, Achille. Necropolítica, biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Arte & Ensaios. Rio de Janeiro, v. [S.I], n. 32, p. 122-151, 2016. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169. Acesso em: 28 ago. 2025.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT). Convenção nº 169 – Povos Indígenas e Tribais. Aprovada em: 27 jun. 1989. Entrada em vigor: 5 set. 1991. Disponível em: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. Acesso em: 31 ago. 2025. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Convencao_169_OIT.pdf
LIMA, Fernanda. TAPAJÓS DE FATO. Como o acesso precário ao sistema de saúde afeta as pessoas nas comunidades e aldeias da Amazônia. 2023. Disponível em: https://www.tapajosdefato.com.br/noticia/1294/como-o-acesso-precario-ao-sistema-de-saude-afeta-as-pessoas-nas-comunidades-e-aldeias-da-amazonia. Acesso em: 29 ago. 2025.
RODRIGUES, Carmen L. R. Etude morphosyntaxique de la langue xipaya (Brésil). Tese (Doutorado em Linguística) – Universidade Paris VII (Denis Diderot), Paris, 1995.
